quarta-feira, 5 de outubro de 2011

MISÉRIA, GÊNERO: QUAL VEM ANTES?

Um sujeito que estuprou meninas de 12 anos acaba de ser absolvido pois “elas já eram prostitutas”.

CORTA

Na TV Globo, que raramente assisto, por razões óbvias, deparo-me com um Profissão Repórter, do Caco Barcelos, que já admirei quando produtor independente. No seu formato “inovador”, que dá destaque quase igual tanto aos jovens reporteres em aprendizado quanto ao próprio tema tratado, o programa cobria, desta vez, o que chamavam de “prostituição infantil” ao longo das estradas brasileiras. De cara, o termo já estava errado. Se é infantil não é prostituição, é abuso. A equivocada visão apresentada pela reportagem, que se veste de “denúncia”, realiza o contrário do que deseja parecer, fornecendo na verdade um reforço, uma “evidência”, mesmo, e nem tão subliminar, para aquela desastrosa decisão judicial com que abri este texto. Decisão duplamente desastrosa pois abre um precedente jurídico. Precedente que esse programa Profissão Repórter justifica, em sua pretensa reportagem--denúncia. Após mostrar meninas (crianças, sim!) prostituidas nas estradas, cidade após cidade brasileira, na conclusão do programa ele encerra falando rapidíssimo, como uma espécie de selo obrigatório, “prostituição infantil é crime no Brasil”. E pronto. No entanto, ao longo de toda a reportagem a equipe vai e volta do norte, acompanhando uma rota “denunciada” por caminhoneiros – os próprios “clientes” das meninas, sempre poupados. Recentemente apresentados até mesmo como “benfeitores”, por terem ajudado a polícia no desenho da rota da “prostituição infantil”.

CORTA

Não existe mídia isenta. Quando o ponto de vista é viciado, o resto da matéria também é. No caso deste programa, já as perguntas são comprometidas, capciosas. A uma mulher que praticamente nasceu na estrada, o jovem “foca” pergunta: “quando foi sua primeira relação sexual?” Ela responde: “Aos 10 anos”. Ora, aos 10 anos uma menina não teve “primeira relação sexual”, ela foi “abusada sexualmente”. Se o ponto de vista do programa não fosse o de culpabilizar as vítimas, o repórter teria prosseguido perguntando: “quando? onde? quem?

Não se trata de minha opinião particular, de “feminista-que-odeia-homem”. Estatísticas mundiais, iniciadas na França (epoliciais, o que indica que os números são bem maiores, tendo em vista o medo que as vítimas sentem de reportar) há anos mostraram que o primeiro estuprador de meninas é o pai biológico, seguido de irmão, tio, outro membro da família e só por último o desconhecido. As perguntas que deveriam ter sido feitas, se o programa quisesse mesmo “revelar” alguma coisa e não apenas servir de apoio à decisão da justiça de liberar o predador recentemente absolvido deveriam ter sido outras. No entanto, a participação masculina nessa desgraça nacional, passa batida para o reporter, ele próprio individualmente talvez inocente do papel que está fazendo.

Dizer que a reportagem nada tinha a ver com o caso não “pega” – essa é uma questão que está causando clamor em todos os jornais!)

No decorrer das buscas por menores prostituidas, no auge das “descobertas escabrosas” surge uma desesperada moradora de um edifício prostíbulo que tenta denunciar uma cafetina que manteria meninas em cárcere privado. Outra vez! Quantos cafetões, porteiros, donos de boteco, de postos de gasolina, não estarão envolvidos nesse negócio? Mais uma vez, uma mulher é focalizada como monstra. Mulher que provavelmente já foi, ela própria, prostituta infantil.

Cansa-me ver vítimas serem sempre as culpadas. Principalmente na televisão. Veículo das massas. As coisas sempre virando ao contrário.

Lembro a importância da televisão para as novas classes médias, que se alimentam de programas humorísticos chulos e preconceituosos, de BBBs, de shows religiosos com testemunhos histéricos de milagres. Lembro dos conluios e arranjos que são feitos para que esse tempo no mais “precioso dos veículos”, seja o maior possível para que um candidato se eleja.

CORTA

Em suma, o tempo todo o foco do Profissão Repórter ficava nas meninas, e apenas nelas e em sua evidente pobreza. O gênero masculino, indispensável ao drama tratado, (clientes, polícia, aliciadores, estupradores) eram fantasmas, seres que nada tinham a ver com tudo aquilo. Personagens inevitáveis mas merecedores de compreensão, que podiam ficar de fora dos holofotes. O perigo eram as meninas. Sim,perigo! Grande impacto foi dado pela faquinha de cabo de plástico, (apresentada nas chamadas, inclusive) que uma delas carregava, “para se proteger”. (Claro que se proteger “do quê” , ou que ataques sofreram, não vinha ao caso, para os reporteres. A pergunta que fizeram foi : “já furou algum?” Ela responde: “muitos, muitos”.

(Interessante esse deslocamento psicológico da faca. Com minha cabeça guestáltica lembrei da conhecida afirmação de masculinidade “eu sou espada!”)

MISÉRIA, SEMPRE A CULPA DE TUDO

Sim, havia “comoventes” closes de pézinhos maltratados, mãos infantis com unhas roidas da menina drogada, meninas grávidas “trabalhando”, evidências da nossa miséria. A cena de policiais espancando jovens. E o repórter “denunciando” na pergunta feita a elas: --Isso é habitual por aqui, é?

O jornalista não tentou conversar com a polícia espancadora. Nem correu atrás, como fez com os travestis, de nenhum cliente. Disseram que era difícil falar com eles. E pronto. A única declaração desse lado da questão foi favorável, é claro, ao gênero masculino: um motorista que mostra a aliança e chama as moças da estrada de bagaço, e ele prefere ser fiel à esposa. Ele é simpaticão, convincente.

Assim, os clientes dessas crianças são fantasmas. Fantasmas cujos ímpetos irrefreáveis sobre meninas de 11, 12, 14 anos não precisam ser questionados, investigados, muito menos censurados. A culpa, segundo a visão do programa, é claramente da miséria. E talvez nem exclusivamente da miséria, mas também das próprias crianças. Sem as informações de “como-onde-quando”, resta ao telespectador brasileiro imbecilizado pela ignorância e pela telinha concluir: “Também, quem mandou ela ter relação sexual aos 10 anos?”

Enfim, o gênero masculino nada teria a ver com a exploração de crianças. Seria só nossa miséria o que tornaria meninas de 10 ou 12 anos, imediatamente “adultas responsáveis e conscientes do que estão fazendo” como disse a defesa do sujeito que foi recentemente liberado do estupro por um juiz brasileiro.

CORTA

Há quem me “acuse” de americanófila. Mas pergunto a quem gostou desse Profissão Repórter, e não concorda comigo, se já assistiu à serie de reportagens da CNN, sobre o mesmo tema, puxada pelo Adrian Cooper? Sim, aquela série também é espalhafatosa, sensacionalista, mas já traz no nome um ponto de vista oposto: proclamam uma cruzada de combate ao abuso de crianças prostituidas. Como Caco Barcelos, Adrian Cooper vai longe, vai até à India! Envolve a polícia local embora, como estrangeiros, não possam interferir oficialmente nas desgraças locais. Mas a série realmente denuncia, agita, tem o ponto de vista de defesa do direito das crianças. Como Oprah Winfrey, que instalou escolas na África onde meninos pequenos repetem ad aeternum: “não vou bater em meninas, vou respeitar meninas, meninas são seres humanos como nós” como se aprende tabuada.

O ponto de vista da mídia brasileira é outro. Há quem diga que os americanos são puritanos. Sim, eles são. E hipócritas. Mas assim como os franceses, os brasileiros são mais atrasados com relação à visão da mulher e da criança. Na França ao menos há uma forte reação feminista e o DSK continua sob sua mira. No Brasil o cenário não parece assim tão distante da situação vivida pelas meninas sob os fundamentalismos muçulmanos, que se “casam” aos 10 anos. E elas casam pra valer, os maridos não ficam aguardando que cresçam para consumar o ato, como há quem acredite. Pudera, a esposa de Maomé tinha 9 anos quando ele teve relações com ela. Qual o mal, não é? Faz parte da cultura deles. Cultura não pode ser usada como desculpa para qualquer coisa. “Cultura não é ditada por Allah” -- como diz a reformadora do Islã Irshad Manji – “é uma invenção humana, dos homens”.

Nossa exploração sexual de crianças seria fruto de miséria, apenas? Ou de nossa cultura brasileira? E nela, qual o papel do gênero?

Como se vê no programa Profissão Repórter, a iniciação sexual de certas meninas começa aos 10 anos. Seus “parceiros” devem continuar a ser perdoados? Ou vamos lutar contra esse precedente jurídico tão evidentemente...fundamentalista?

Rita Moreira

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